sábado, 23 de outubro de 2010

CAPÍTULO XVI

O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo.
Clarice Lispector


Dario havia chegado um pouco mais cedo propositalmente. Estacionou o carro e foi conversar com o segurança do prédio para averiguar se estava tudo tranqüilo. Aliás, essa era a palavra que definia tudo o que ele não sentia desde que Serena havia voltado a sua rotina. Seus anos de trabalho lhe diziam que Ricardo não ia deixar essa história barata.
― Por aqui tudo tranqüilo, Dario.― respondeu o segurança, já acostumado com as visitas inesperadas do amigo de trabalho.
Quando se dirigia a entrada principal avistou Serena e, ao mesmo tempo, viu um homem estranho ao seu lado segurando seu braço.
― O que está havendo aqui?― perguntou, tentando parecer o mais profissional possível.
Dario percebeu que ele foi embora rápido demais quando o viu. Mas quando viu a expressão horrorizada em Serena, teve certeza de que esse homem traria problemas. O certo seria ir atrás dele, mas não podia deixar ela assim.
― O que houve, Serena? Você conhece esse homem?― perguntou, segurando suas mãos.
Mas parecia que ela não ouvia suas palavras. Seu olhar estava vazio e perdido.
― Serena!― chamou de novo, dando uma leve chocalhada em seus ombros.― Ele fez algo com você? Vou atrás dele...
Mas a última frase a trouxe para a realidade. Sua mente tinha voltado no passado, mas especificamente na noite em que a mãe morrera.
― Não! Ele é perigoso...― cortou a frase no meio quando percebeu o papel em suas mãos.
Dario também percebeu o papel e pegou da mão dela rápido. Ela podia ver as veias saltando do seu pescoço enquanto lia o que estava escrito, o que indicava que estava nervoso.
― O que foi, Dario?
― Vamos sair daqui para conversarmos. ― disse simplesmente, conduzindo-a pelo braço até seu carro.
Foram em silêncio até um restaurante. Tinha perdido o apetite totalmente, por isso pediu apenas um suco de laranja.
― Eu não conheço aquele homem, Dario... mas reconheci sua voz.― começou a dizer.
― De onde?
― Ele foi o homem que matou minha mãe... a voz que ouvi no último telefonema que ela me deu. Tenho certeza!
Silenciosamente, ele passou o papel para sua mão.
“Se tem amor a sua vida, mude de cidade novamente.”
― Se tem amor a sua vida... é ele Dario... foi o que eu ouvi ele dizendo a minha mãe... que ela não tinha amor a vida.
Surpreendentemente, estava se sentindo calma o suficiente para pensar com clareza. Podia perceber a perturbação de Dario e sabia que ele ia querer levá-la para algum outro esconderijo.
― Dario, não vou me esconder... não vê a oportunidade? Podemos pegar ele! Aposto que Ricardo está por trás disso também.
― Você não está me dizendo que vai ser uma espécie de isca?― perguntou, a voz um pouco elevada. ― Você acha que vou deixar você se arriscar novamente, Serena? Já não basta o estado de aflição que passo constantemente longe de você! Tenho até receio de não estar trabalhando direito...
― Você é um ótimo policial, Dario! Ninguém duvida disso! E não quero ser um peso para você. ― disse, em tom provocativo, para ver se ele ria. Mas ele levou a sério.
― Peso? ― perguntou incrédulo.
― Bem... antes de eu chegar aqui, você tinha sua vida, sua rotina. Sei que você se preocupa demais comigo e...
Mas ela foi interrompida pelo garçom. Aproveitou para trocar de assunto.
― Vamos esquecer isso por enquanto... tenho uma novidade para te contar! Queria que fosse a primeira pessoa a saber! Fui promovida... vou ser editora chefe!― exclamou alegre.
― Que notícia maravilhosa, Serena! Temos que comemorar... podemos jantar hoje.
― Vou ligar para a babá então.― Lucas agora ficava na creche.― Mas só vai ser oficial numa festa que o diretor resolveu dar. Não sei ainda quando vai ser...
― Dario, não vou me esconder novamente!― interrompeu o que dizia, percebendo que ele não prestava nenhuma atenção.
Mas ele não respondeu, apenas assentiu com a cabeça. Almoçaram em silêncio, mas com muitas palavras e pensamentos que não externaram. Serena sabia que ele andava estressado e preocupado demais e que a causa principal era ela mesmo. Desde que ela retomou sua vida normal, ambos tinham tido poucos momentos a sós.
― Desculpe, Serena... não queria te deixar triste hoje. Fiquei muito feliz mesmo com a notícia da sua promoção.― disse ele com voz um pouco triste, quando saiam do restaurante.― Vou te levar para jantar hoje
Ela preferiu não responder como queria. Ele realmente estava afetado e parecia triste.
― Promete?― perguntou com voz doce.
― O que você quer que eu prometa?― perguntou meio desconfiado.
― Que vamos jantar, ora!― respondeu dando um sorriso, enquanto o abraçava. Propositalmente deixou seus dedos brincarem com os botões de sua blusa. Sabia que ele evitava mais intimidade quando estava de serviço, mas não pôde evitar. ― Estou com saudades de você.
De repente, de forma um pouco abrupta, ele segurou seu braço e a guiou para a lateral do restaurante, que era um local mais reservado.
― Desculpe!― disse ela, achando que ele não tinha gostado da sua demonstração pública de carinho.― Eu sei que...
Mas ele interrompeu sua frase com um beijo apaixonado e arrebatador. Ela sentia sua urgência e nada mais importava. Colou seu corpo o máximo que pôde no dele e passou os braços ao redor de seu pescoço, intensificando o beijo. Sentiu a mão dele descendo por suas costas e passando sobre o tecido fino da sua saia. Sabia que estava totalmente entregue naquele momento.
― Pareço um adolescente perto de você, Serena. ― disse ele, ofegante.― Minha vontade é arrancar sua roupa e...
Foi interrompido pelo toque do radio em sua cintura.
“Dario!Precisamos de ajuda...”
Dando um suspiro resignado, Serena encostou o rosto em seu ombro para recuperar o fôlego.
― Vá trabalhar, Dario. Estão precisando de você na delegacia.
― Vou te deixar na redação antes. Sei que você não vai querer se esconder novamente, mas vou tomar algumas medidas para sua própria segurança. Tudo bem, Serena? E preciso que você me prometa tomar mais cuidado de agora em diante.
― Está bem, Dario. Vou ter cuidado. E Lucas?
― Ele ficará bem. Vou reforçar a segurança dele.
― Dario... você não me prometeu ainda... vamos jantar mesmo hoje?
― Eu prometo tudo o que você quiser. Vou estar livre hoje a noite, não importa o que aconteça... até porque precisamos terminar o que começamos agora...― disse ele com um sorriso maroto.

Já estava no fim do expediente e Serena começava a arrumar suas coisas. O escritório ainda estava movimentado, mas algumas pessoas já se preparavam para sair. Em cima de sua mesa, havia um papel com algumas anotações que fizera num esforço enorme para se distrair. Mas sua mente estava dividida em duas coisas: o homem que encontrara mais cedo e em Dario. Queria muito ter uma amiga para conversar e tirar dúvidas envolvendo relacionamento. Sentia muita falta de sua mãe nessas horas.
Dando um suspiro resignado, pegou sua bolsa e dirigiu-se ao estacionamento. Enquanto procurava as chaves dentro da bolsa, escutou passos de alguém atrás dela. Tentando ficar calma, procurou seu spray de pimenta que Dario insistira muito para carregar. Quando achou, virou o corpo, pronta para atacar se necessário. Mas se surpreendeu quando viu a figura de uma mulher loira e alta sorrindo para ela.
― Mariana!― exclamou aliviada.
― Olá, Serena. Passei para ver como você estava.
― Assim, do nada?― perguntou, sorrindo de volta.
Ela não estava uniformizada. Sabia que tinha dedo de Dario no meio dessa história.
― Bem... na verdade, é isso mesmo que você está pensando. Dario me pediu que te levasse em casa. Mas antes que você fique zangada, pense que ele está nervoso com o tal homem. Até identificarmos quem ele é, melhor nos prevenirmos.
― Não vou ficar zangada. Bom, tenho um tempo ainda antes de buscar Lucas na escola. Podemos tomar um café, o que você acha?
As duas passaram no shopping e tomaram um café juntas. Conversaram bastante e Serena deixou de ter ciúme daquela mulher linda e provocativa que imaginara.
― Quando te conheci naquela situação dramática, eu só pensava em como você era bonita e como Dario apreciava sua presença... ― revelou Serena, em determinado momento.
― Nunca pensei em Dario como namorado ou amante. Ele sempre foi muito protetor e responsável. Na verdade... até te conhecer, nunca o vi assim.
― Assim como?― perguntou, antes que pudesse se conter.
― Tão preocupado com alguém, eu acho...― respondeu, meio pensativa.
Não era o que esperava ouvir e aquelas palavras aumentaram ainda mais os seus receios.
― Mariana, posso te perguntar algo? Mas gostaria de ter uma resposta sincera.
― Vou fazer o possível.
― Você acha que estou sendo um... problema para ele? Digo, estou atrapalhando o trabalho dele?
Mas antes que Mariana pudesse abrir a boca para responder, Mônica apareceu na frente das duas.
― Serena! Nossa, que bom te encontrar aqui, minha filha. Quero que vá jantar lá em casa hoje. Dario já me contou a novidade e disse que te chamou para jantar... então eu sugeri que fosse lá em casa. O que você acha? Não precisa chamar a babá não, deixa que eu tomo conta de Lucas para vocês.
Enquanto Serena aceitava a proposta de Mônica, sua mente pensava em outro problema. Mais propriamente na resposta que viu refletida nos olhos de Mariana.

Serena estava na cozinha de Mônica cortando algumas batatas, enquanto Mônica brincava com Lucas no quintal. Só faltava terminar a salada de batatas e quis ajudar de alguma forma. Colocou as fatias na panela para cozinhar e se sentou numa cadeira do quintal, observado Lucas rindo atrás de uma lagartixa.
― Você está muito pensativa, minha filha. Algum problema?― perguntou Mônica, parecendo preocupada.
Serena sabia que podia confiar nela, mas não quis preocupá-la.
― Não é nada, Mônica. Só estou cansada mesmo.
― Ainda não tivemos oportunidade de conversar depois de tudo o que ocorreu, mas estou sempre por aqui. Espero que não tenha ficado chateada por ter sugerido o jantar aqui em casa.
― Não. Por que eu ficaria?
― Bom... achei que fosse mais seguro. Dario anda tão preocupado com você e eu gosto de cuidar do Lucas.
Ao ouvir essas palavras, Serena engoliu a vontade de chorar e pediu licença para ver a panela na cozinha. Para se distrair, tirou a panela do fogo e, ao escorrer a água na pia, um pouco da água quente caiu em sua mão.
Sentindo a ardência da mão, não reprimiu as lágrimas dessa vez. Colocou a mão debaixo da água fria, mas o que mais doía era a sensação de impotência.
“Se ao menos tivesse algum jeito de eu pegar Ricardo...” pensou desesperadamente.
― Oi amor, desculpe a demora... ― começou Dario, entrando na cozinha, mas interrompeu o que dizia ao ver seu rosto molhado de lágrimas― O que houve?
Num instante ele estava ao seu lado, abraçando-a terno.
― Não foi nada...― disse numa voz hesitante. Tentou passar a outra mão no rosto para limpar as lágrimas, mas ele foi mais rápido e secou com a própria mão. Diante do gesto tão gentil dele, ela sentiu que os olhos ficavam novamente inundados.
― Eu queimei a mão na água... desculpa!― disse, lutando para não chorar mais.
Sem dizer nada, ele a levou ao banheiro para cuidar da mão.
― Você ficou chateada por não sairmos hoje? Minha mãe quis fazer o jantar e...
― Não, Dario. Estou feliz por estarmos aqui.― disse, interrompendo-o.
Mas ele a olhava desconfiado. Dario sabia que havia algo a mais por detrás das suas lágrimas. Ele conseguia ler nos seus olhos uma dúvida que ele não entendia qual era.
― Vou deixar você trocar de roupa para jantarmos. Vou ajudar sua mãe com Lucas.― disse e saiu de perto dele, antes que fizesse mais alguma pergunta.

― Serena, estou com sono...― disse o menino em voz sonolenta, no colo da irmã, depois do jantar.
Ela ficou em dúvida no que responder por que não sabia se iria dormir ali ou não.
― Mamãe, ele pode dormir com você hoje?― adiantou-se Dario.
Serena sentiu que ficava vermelha, mas procurou disfarçar. Então, Mônica subiu com ele enquanto eles arrumavam a cozinha.
― Dario, o que sua mãe deve estar pensando? ― perguntou ela, terminando de lavar o último prato.
― O que ela deveria estar pensando?― ele estava guardando os talheres distraído, mas tinha um sorrido nos lábios.
Ela ia brigar com ele, mas o sorriso dele a desarmava sempre. Pegou uma toalha de prato e jogou nele, fingindo-se de brava.
― É mesmo... ela não vai pensar nada, já que vou dormir no quarto de hóspedes não é mesmo?― perguntou, disfarçando um sorriso e seguiu em direção as escadas.
Mas antes mesmo que conseguisse chegar as escadas, sentiu a mão quente dele em sua cintura.
― Você não está falando sério, está?― perguntou, meio em dúvida.
Ela ainda ia brincar com ele mais um pouco, mas foi impossível desviar os olhos dos dele.
Ao invés de responder, ela colou o corpo no dele e o beijou rapidamente.
― Não. Também quero terminar o que começamos mais cedo. ― disse em voz baixa.
Ele a pegou no colo e ela segurou uma risada, com medo de Mônica escutar.
―Você é louco! Sua mãe está aqui com Lucas!
― Já sou bem grandinho, Serena.
― Eu sei...

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